O anti-Natal

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Descobrindo a cada ano que o Natal é um turbilhão de emoções contraditórias, sentimentos de ternura que se diluem na raiva de quem os vê com desdém. Não me preocupa em mais nenhuma altura do ano, excepto no Natal. E, curiosamente, quando uma tentativa de ternura, particularmente difícil, é frustrada por um frustrado invejoso.

Sentimentos de inveja, são benéficos, dão valor a quem o tem, e, quero acreditar, melhora quem inveja. Não será o caso, contudo, a esperança de que um dia um acto de ternura seja reconhecido como tal, o valor seja dado a quem o tem e a inveja não frustre mais ninguém, existe. É, aliás o que, ano após ano, faz do Natal uma época de esperança, frustração, alegria e tristeza.

Mas este sentimento carece de uma capacidade enorme para lidar com ele, senão engole-nos e transforma-nos. Quando a inveja é gratuita e se enaltece o que é nosso, por frustração, apenas para nos fazermos crer que tudo o que invejamos, está, afinal em nós, é aí! É aí que a inveja perdura mais do que o momento em si, se espalha tal como um vírus mutante, pois muitas vezes se transforma em raiva. É aí que o invejado, em vez de sentir o seu valor a crescer, se sente frustrado, frustrado por um frustrado invejoso.

É aí que o Natal se transforma em anti-Natal.

Seu Jorge - Brasis

quarta-feira, junho 06, 2007
Tem um brasil que é próspero
Outro não muda
Um brasil que investe
Outro que suga
Um de sunga
Outro de gravata
Tem um que faz amor
E tem o outro que mata

Brasil do ouro, brasil da prata
Brasil do balacochê da mulata

Tem um brasil que é lindo
Outro que fede
O brasil que dá é igualzinho ao que pede
Pede paz, saúde, trabalho e dinheiro
Pede pelas crianças do país inteiro
Lararará

Tem um brasil que soca
Outro que apanha
Um brasil que saca
Outro que chuta
Perde, ganha
Sobe, desce
Vai à luta bate bola
Porém não vai à escola

Brasil de cobre, brasil de lata
É negro, é branco, é nissei
É verde, é índio peladão
É mameluco, é cafuso, é confusão
É negro, é branco, é nissei
É verde, é índio peladão
É mameluco, é cafuso, é confusão

Oh pindorama eu quero seu porto seguro
Suas palmeiras, suas feiras, seu café
Suas riquezas, praias, cachoeiras
Quero ver o seu povo de cabeça em pé

Infelizmente...

segunda-feira, junho 04, 2007
Hoje fui encher os pneus da bicicleta, estava eu concentradíssimo a tentar atinar com a melhor maneira de utilizar as bombas da estaçao de serviço quando de repente ouço: "Está furado? Se não conseguir encher eu consigo!", uma voz curiosa, meiga, atrevida, inocente e sabichona de uma rapariga de cabelos encaracolados, castanhos, digna de uma série de desenhos animados dos anos 80, exceptuando as sardas que não tinha.

Levanto os olhos do pneu traseiro da bicicleta e deparo-me com aquela menina de pouco mais de meio metro a olhar pra mim com um ar de quem espera uma resposta que deveria ter sido mais célere. Respondo-lhe que não está furado enquanto termino de encher o pneu.

Já com a menina de cócoras, analisando todos os meus movimentos para ver se estavam certos, pergunto-lhe se me quer ajudar e aumentar a pressão rodando a roda presa na parte lateral do aparelho (já não sei o que lhe chamar). Expliquei-lhe para que lado devia rodar e, ainda não tinha terminado a frase, já a pirralhita estava de mão na roda a rodar como entendida no assunto que era, bem devagar para não estragar.
Terminei de encher o pneu e fui guardar a mangueira do ar perto do aparelho de encher pneus." Não tem pipo?" era a voz de novo que falou cedo demais, pois quando olhei já ela estava de pipo na mão à espera que eu lhe desse autorização para o apertar na roda da bicicleta.

Dada a autorização, o sorriso apareceu no rosto dela, sorriso esse que se modificou rapidamente para uma língua de fora em sinal de complicações inesperadas para tão eficiente menina.
Pronto para ir embora, agradeci a preciosa ajuda com um sorriso e recebo um respeitoso e carinhoso "De nada."

Pensando que tinha sido educado o suficiente montei na bicicleta e dei a primeira pedalada, imediatamente travada pela menina que exclamou, para minha vergonha: "Até amanhã!", corei e pensei que afinal ela tinha razão e que depois de tanta cumplicidade numa tarefa que afinal ela tornou tão mais fácil, a menina merecia uma despedida mais completa.

Tive vontade de sair da bicicleta e dar um beijinho à menina que olhava para mim com um ar desiludido, pois já raramente vejo crianças assim. Não o fiz...
Não o fiz porque de repente pensei, "onde estão os pais?" Não estavam por perto por isso pensei que poderiam estar dentro da loja de olho na filha. Assolou-me um pensamento, "se fosse minha filha e eu não soubesse do que se tratava e visse um estranho, adulto, a beijá-la, o que iria pensar eu?" Nos dias que correm, é preciso ter cuidado! Ainda esbocei o movimento de desmontar da bicicleta, mas rapidamente desisti. Respondi-lhe "Até amanhã fofinha!" e pedalei, sem olhar para trás, não fosse ter desiludido a menina mais uma vez.

Mais tarde, contei à minha mãe esta história, e antes de lhe contar esta parte final já estava a ser interrompido com um autoritário: "Não lhe deste um beijinho de agradecimento por te ter lembrado de que não é assim que se despede das pessoas?", contei-lhe porque não o tinha feito, ao que a minha mãe respondeu: "Que mundo cão!"
Pois é... Hoje já não se pode beijar uma criança, apenas por ela ser criança, tem que ter uma justificação válida, testemunhas, etc, tudo o que precisamos num tribunal para provar que não fizemos nada de errado.

Hoje passei por mal-educado, insensível, por medo do que esta sociedade poderia pensar se eu beijasse a minha imprescindível ajudante... infelizmente!

Cuidado

sexta-feira, maio 25, 2007

Vou-te contar um segredo,
Sem medo.
És desinteressante,
Muito irritante,
Sorriso embirrante,
Com um ar pedante,
De feio semblante,
Que se acha importante,
E nem por um instante,
Deixas de ser ignorante.
Vou-te contar um segredo,
Sem medo.

O Meu Mundo

O meu mundo começa a ganhar forma, as esquinas são mais rectas e mais transparentes, quase posso adivinhar quem vem lá, o que me espera, ou talvez só se tem força suficiente para me derrubar. Os prédios são mais altos e os elevadores junto à porta, um porteiro fardado na parte da frente para me dar as boas vindas e nu nas costas para que possa entrar já com um sorriso.

O autocarro sempre a horas deixa-me no sítio certo e fiz a viagem ao lado de uma criança que brincava com os dedos ao invés do habitual sovaco mal cheiroso. As bostas de cão estão todas no passeio do outro lado, os sinais estão todos verdes, toda a gente pára na passadeira.
O meu mundo começa a ganhar forma.

O chiar de um carro chama-me à atenção para o sinal vermelho, para a bosta no meu sapato e para o autocarro a ir embora.

O meu mundo começa a ganhar forma, é melhor andar de devagar para me habituar.