Hoje fui encher os pneus da bicicleta, estava eu concentradíssimo a tentar atinar com a melhor maneira de utilizar as bombas da estaçao de serviço quando de repente ouço: "Está furado? Se não conseguir encher eu consigo!", uma voz curiosa, meiga, atrevida, inocente e sabichona de uma rapariga de cabelos encaracolados, castanhos, digna de uma série de desenhos animados dos anos 80, exceptuando as sardas que não tinha.
Levanto os olhos do pneu traseiro da bicicleta e deparo-me com aquela menina de pouco mais de meio metro a olhar pra mim com um ar de quem espera uma resposta que deveria ter sido mais célere. Respondo-lhe que não está furado enquanto termino de encher o pneu.
Já com a menina de cócoras, analisando todos os meus movimentos para ver se estavam certos, pergunto-lhe se me quer ajudar e aumentar a pressão rodando a roda presa na parte lateral do aparelho (já não sei o que lhe chamar). Expliquei-lhe para que lado devia rodar e, ainda não tinha terminado a frase, já a pirralhita estava de mão na roda a rodar como entendida no assunto que era, bem devagar para não estragar.
Terminei de encher o pneu e fui guardar a mangueira do ar perto do aparelho de encher pneus." Não tem pipo?" era a voz de novo que falou cedo demais, pois quando olhei já ela estava de pipo na mão à espera que eu lhe desse autorização para o apertar na roda da bicicleta.
Dada a autorização, o sorriso apareceu no rosto dela, sorriso esse que se modificou rapidamente para uma língua de fora em sinal de complicações inesperadas para tão eficiente menina.
Pronto para ir embora, agradeci a preciosa ajuda com um sorriso e recebo um respeitoso e carinhoso "De nada."
Pensando que tinha sido educado o suficiente montei na bicicleta e dei a primeira pedalada, imediatamente travada pela menina que exclamou, para minha vergonha: "Até amanhã!", corei e pensei que afinal ela tinha razão e que depois de tanta cumplicidade numa tarefa que afinal ela tornou tão mais fácil, a menina merecia uma despedida mais completa.
Tive vontade de sair da bicicleta e dar um beijinho à menina que olhava para mim com um ar desiludido, pois já raramente vejo crianças assim. Não o fiz...
Não o fiz porque de repente pensei, "onde estão os pais?" Não estavam por perto por isso pensei que poderiam estar dentro da loja de olho na filha. Assolou-me um pensamento, "se fosse minha filha e eu não soubesse do que se tratava e visse um estranho, adulto, a beijá-la, o que iria pensar eu?" Nos dias que correm, é preciso ter cuidado! Ainda esbocei o movimento de desmontar da bicicleta, mas rapidamente desisti. Respondi-lhe "Até amanhã fofinha!" e pedalei, sem olhar para trás, não fosse ter desiludido a menina mais uma vez.
Mais tarde, contei à minha mãe esta história, e antes de lhe contar esta parte final já estava a ser interrompido com um autoritário: "Não lhe deste um beijinho de agradecimento por te ter lembrado de que não é assim que se despede das pessoas?", contei-lhe porque não o tinha feito, ao que a minha mãe respondeu: "Que mundo cão!"
Pois é... Hoje já não se pode beijar uma criança, apenas por ela ser criança, tem que ter uma justificação válida, testemunhas, etc, tudo o que precisamos num tribunal para provar que não fizemos nada de errado.
Hoje passei por mal-educado, insensível, por medo do que esta sociedade poderia pensar se eu beijasse a minha imprescindível ajudante... infelizmente!